Os Futuros do trabalho

Aerolito: Os futuros do trabalho

Por time de pesquisa Aerolito.

Como iremos trabalhar no futuro?

Essa pergunta ronda frequentemente os espaços de discussão que ocupamos e parece ser fundamental. Urgente, inclusive, dado o momento em que vivemos. Entretanto, muitas as respostas para ela acabam sendo simplistas, binárias. Remoto x Presencial. Plataforma x Modelo Tradicional. Horários Flexíveis x Horários Rigidos. Por aqui queremos levar a conversa para outros lugares, talvez menos preocupados em dar respostas e mais empenhados em olhar para futuros.

Afinal, os futuros não estão tão somente no campo do , eles também existem no aqui. Dizemos isso porque os futuros impactam as nossas ações no hoje, seja por meio da suposição ou do planejamento, do medo ou do entusiasmo, da expectativa ou até mesmo da falta dela. Inegavelmente, todos nós temos sentimentos sobre os futuros que acabam por afetar as nossas ações no presente que, por sua vez, impactam na construção desses futuros. Portanto, se faz necessário pensar os futuros a partir de seus contextos, ainda que a gente decida romper com o que existe e criar algo inteiramente novo ou reforçar — e até mesmo resgatar — as práticas que acreditamos, para que elas permaneçam nos futuros. Só conseguimos fazer isso a partir de um ponto referencial: do contexto em que estamos inseridos. Através dele conseguimos entender onde queremos chegar e a partir dele conseguimos trilhar os caminhos possíveis.

A mesma coisa acontece quando pensamos nos futuros do trabalho, para chegar nos futuros precisamos partir de algum lugar e este texto será ponto de partida. Neste primeiro momento, nós iremos olhar para o trabalho em si e entender do que estamos falando quando falamos sobre esse tema. O objetivo aqui é sedimentar as bases que nos ajudarão a vislumbrar futuros.

Nosso ponto de partida: o que, afinal de contas, é trabalho?

Trabalhar é o ato de transformar. É importante entender que não há juízo de valor nesta afirmação, ao falar em transformação não estamos fazendo referência a um propósito de vida, a uma transformação interior advinda dos sentidos e valores que são constantemente adicionados ao trabalho. O sentido é menos glamouroso (e menos motivacional), diz respeito a compreender o trabalho em sua influência recíproca: o ato de trabalhar modifica o ambiente em que estamos inseridos e, do mesmo modo, nós somos modificados por esse ambiente. Todo o trabalhador acaba por modificar uma parte da realidade e, ao mesmo tempo, se modifica a partir dela, é um ato recíproco.

O motorista de ônibus que diariamente carrega pessoas entre diferentes pontos da cidade não somente transforma o ambiente urbano, mas se transforma também ao perceber as diferentes (e muitas vezes duras) realidades daquelas pessoas que transporta. A social media da empresa, ao comunicar e estabelecer relações em plataformas sociais, transforma a percepção da sociedade em relação a marca que trabalha, ao mesmo tempo que se transforma entendendo as entrelinhas da sua atuação e o papel que tais tecnologias tem na manutenção, construção e, por que não, destruição de reputações.

Atribuímos significados e somos significados através do trabalho. Seguindo essa lógica, podemos dizer que o trabalho é parte da cultura, afinal, a cultura, em um tweet, pode ser definida como o campo simbólico e material das atividades humanas. Assim, quando falamos sobre trabalho, estamos falando, indiscutivelmente, sobre cultura e, consequentemente, sobre o modelo de produção atual: o capitalismo.

Falamos isso porque, é só por meio dessa tríade — trabalho / cultura / capitalismo — que é possível propor uma definição para o trabalho e esta definição nos ajudará a refletir sobre os futuros que vislumbramos.

Por definição, o trabalho pode ser entendido como: ação exclusivamente humanagerador de valor de usoconstrutor da subjetividade e de relações sociais.

Vamos por partes:

  1. Ação exclusivamente humana: por mais que vários seres vivos produzam, os seres humanos trabalham de forma universalizante, não tão somente por necessidade, mas também porque significam o trabalho que executam. Importante dizer que dar significado não tem relação com ter um propósito de vida, a questão é que para nós, humanos, no fim do processo de trabalho buscamos um resultado que desde o início existia em nossa imaginação, e portanto idealmente. Daí o significado.

    Ainda assim, como bem sabemos, a organização do sistema produtivo levou a uma ruptura entre o sentido subjetivo e o sentido objetivo ao resultado do trabalho e, consequentemente, a todo o processo de trabalho: o que definiu um significado completamente alheio ao que deveria ser conferido pelo sujeito que o produziu.
  2. Gerador de valor de uso: a partir da nossa força de trabalho geramos e adicionamos valor às coisas que produzimos.
  3. Construtor da subjetividade: inegavelmente o trabalho ocupa um papel visceral na nossa identidade. “O que você quer ser quando crescer?”, ao fazer essa pergunta esperamos uma resposta relacionada ao trabalho e a profissão, ainda que esta seja uma pergunta sobre o que a pessoa deseja ser. Essa lógica permanece, provavelmente, você quando se apresenta ou fala de si menciona sua profissão, porque ela nos significa. As conexões entre identidade e trabalho são tantas que construímos parte da nossa subjetividade, do nosso mundo social, a partir das relações de trabalho.
  4. Construtor de relações sociais: como colocado, as relações de trabalho foram construídas por e, ao mesmo tempo, constroem o modo de produção vigente. O capitalismo, que, mais do que um sistema econômico, se constitui como um ethos cultural, gera valores que orientam e organizam a vida das pessoas. E um desses valores, sem dúvidas, é o trabalho.

Em resumo: o trabalho nos significa como indivíduos e socialmente, mas ao mesmo tempo, na conjuntura capitalista, o trabalho passa a ser alheio a nós mesmos. Assim, muitas vezes, para nós, a motivação íntima do nosso trabalho — nossos desejos e, consequentemente, seus significado — são radicalmente transformados e esvaziados. O trabalho passa a ser desprovido de subjetividade e, com ele, esvai-se parte significativa da nossa própria identidade. O cansaço experienciado por muitos em relação ao trabalho, mesmo quando amam ele, evidencia isso.

Dá-se aí algumas questões, que não serão respondidas agora, mas que servem de insumo para nós refletirmos os futuros que almejamos:

De que forma o trabalho ainda exprime parte considerável da nossa identidade? Nossa identidade é multifacetada e, como visto, o trabalho é parte importante dessa construção, será por isso que comumente conectamos quem nós somos e o nosso valor com a nossa produtividade? Entendendo que, em muitos casos, trabalhar é sobrevivência, há, de fato, uma relação direta entre satisfação pessoal e trabalho? Ademais, precisamos ter satisfação pessoal no trabalho? Ou podemos deixar as satisfações para outras esferas da vida? Ainda que muitos tenham o privilégio de se satisfazer profissionalmente, quais os limites dessa relação? Há quais valores o trabalho está atrelado? Esses valores estão mudando? Nós temos controle sobre essas mudanças?

O presente: entendendo o trabalho no tempo que ocupamos

Um estudo conduzido pela Aberje mostrou que 52% dos trabalhadores brasileiros sofrem de ansiedade enquanto estão no trabalho. A mesma pesquisa apontou que 47% dizem se sentir cansados com frequência, deste número, 22% alegaram que o desânimo e a frustração contribuem para o desgaste. Do total de trabalhadores entrevistados 89% consideram a falta de empatia dentro das empresas um problema que merece mais atenção.

Christian Dunker, psicanalista e intelectual sobre as transformações da vida no trabalho, em seus últimos textos e entrevistas fala sobre como a maior parte das empresas vem administrando o sofrimento dos trabalhadores em prol da produtividade, isto é, extraem mais performance através do sofrimento destes trabalhadores.

Como isso ocorre? Dunker coloca que passamos a encarar o trabalho quase como um jogo. Onde perde ou ganha passam a ser lógicas estruturais da força no trabalho, como se ter uma coisa compensasse a falta da outra e vice-versa: seja quando salários baixíssimos são oferecidos e ilusoriamente compensados por um salário emocional; ou quando os salários são altos, mas com eles soma-se um ambiente de trabalho hostil e abusivo; além disso, muitos de nós se vêem em estado de alerta, na tentativa por provar valor para que não sejamos demitidos, mas as regras desse jogo nem sempre estão claras, o que gera medo e incerteza.

Ainda que o problema esteja na lógica como um todo, provavelmente, você já passou pela seguinte situação: lhe foi dado mais trabalho do que você poderia realizar no tempo de trabalho, mesmo já sabendo disso, você trabalhou excessivamente para entregar e, por fim, se sentiu culpado por estar trabalhando demais ou por não ter sido produtivo como desejava. Segundo Dunker, esse é um movimento de predação. Esta incerteza constante gerada pelas próprias lógicas das empresas nos coloca em estado de alerta, nos faz produzir e quando esgotados nos sentimos culpados. Importante dizer que não estamos falando que esse é um movimento consciente e planejado pelas empresas, mas que, ainda que inconsciente, ele de fato acontece e, nós, infelizmente, nos acostumamos com essa realidade.

Há uma naturalização — e, em alguns casos, romantização — da produção no adoecimento. Nesse contexto, somado ao afastamento das subjetividades, as discussões sobre propósito parecem não caber mais. Como colocado na pesquisa da Aberje, vemos o aumento de pessoas desacreditadas e buscando outros caminhos.

Podemos recorrer a um modelo de trabalho que funciona de exemplo para explicitar o que estamos falando: o modelo plataforma.

Em dado momento, o modelo plataforma se mostrou uma alternativa possível à realidade em que vivemos. A possibilidade de gerir o próprio trabalho, de organizar os horários da forma que fosse mais conveniente, podendo decidir como e quando trabalhar, parecia ser um caminho de liberdade e autonomia do próprio trabalhador. Acontece que essa história não acabou aí.

De fato, por um lado, as plataformas digitais são uma oportunidade de geração de renda e acesso ao mercado de trabalho com maior autonomia, por outro, a plataformização do trabalho é, para muitos, sinônimo de precarização.

Trazemos esse exemplo porque, sim, ainda que possa parecer contraditório, diferentes modelos de trabalho podem ser precarizados ou sustentáveis, providos ou desprovidos de sentido, são possíveis trabalhos plataformizados sustentáveis e justos, assim como existem trabalhos plataformizados precários. Um exemplo disso pode ser a empresa brasileira AppJusto, analisada e entrevistada pela equipe da Aerolito. E ela não está sozinha neste movimento. A startup inglesa Collective Benefits e a brasileira Trampay, representam um movimento de dar benefícios trabalhistas para quem opera na economia de plataforma.

Seja aprimorando o sistema atual ou criando um novo, faz-se primordial pensar alternativas.

Quais outros caminhos alternativos podemos pensar para esta realidade? Quais novos modelos de trabalho podem corresponder às necessidades dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, estrategicamente às empresas?

Este texto propõe é ser o ponto de partida, não de chegada. Para que a partir do presente incerto que vivemos, somado à recente precarização, nós possamos especular os futuros do trabalho e buscar por novas direções.

As transformações nos modelos de trabalho são constantes, diferentes caminhos podem ser trilhados quando falamos em futuros e é desses futuros que falaremos nos próximos textos dessa série.

E para você, como podemos reimaginar os futuros do trabalho?

Acompanhe ao longo das próximas semanas as continuações desta exploração.

Artigo publicado originalmente no blog Aerolito